Manaus
Às duas da tarde do verão de 1984, no meio de um longo engarrafamento no centro da cidade, o motorista apontou para o carro à frente, e perguntou: “O senhor sabe por que aquele Volks está com todos os vidros fechados?” Antes que eu dissesse não, ele respondeu: “Para que todos pensem que tem ar condicionado.” Como aquele motorista, os demais brasileiros sacrificam demais o conforto possível, para dar a impressão de dispor dos instrumentos do conforto. Aquele encontro, no meio de um engarrafamento, permitiu um conhecimento maior da realidade brasileira do que quadros estatísticos e formulações teóricas da economia. Tomar contato com aquela realidade foi como mergulhar no âmago da lógica da economia brasileira. Um mergulho no Brasil que, para descrever e entender o país, deve começar pelo entendimento da alma do conjunto de sua população. Tem que ser um mergulho na lógica que faz o Brasil mover-se. Não pode se limitar a ver o Brasil. Tem que entender como o Brasil vê o Brasil. Como o homem dentro de um carro fechado, no calor sem ar condicionado, vê a si mesmo, graças ao fato de se ver pelos olhos dos outros. Como gostaria que os outros o vissem: como o confortado dono de um carro com ar condicionado. Pervertendo o processo econômico. Fazendo do ar que deveria ser usado para dominar o calor da tarde o símbolo do poder de não sentir calor. Mesmo que às custas de sofrer um calor maior. Aquele comportamento era similar ao de toda a população brasileira que, em território tropical, se submete a uma economia desadaptada a suas necessidades, incompatível com seus recursos, desvinculada de sua cultura, com a finalidade de dar ao mundo a impressão de riqueza. Não apenas os consumidores se comportam como gostariam de ser vistos. Os cientistas sociais que tentam mergulhar na realidade brasileira produzem teorias conforme imaginam que seus colegas desejam. Prendem-se a modelos já preparados, usam linguagens especiais, para que os outros pensem que eles têm o ar condicionado do saber academicamente oficial. Mesmo quando se atrevem a desnudar o real, denunciar que o carro não tem ar condicionado e estamos todos morrendo de calor, os cientistas tendem a não expor as idéias que pareçam romper com o comodismo teórico do consumismo de escolas estabelecidas. Temem abrir as janelas e demonstrar a todos a incompetência de formulações, teorias e linguagens pouco acuradas. Sobretudo quando, além de dúvidas, eles não têm teorias alternativas. Mas um mergulho no caos da consciência coletiva brasileira dificilmente se faz se usamos o escafandro das teorias formuladas para explicar, como se tivessem lógica, o caos e a irracionalidade. A realidade de um motorista suando para dar a impressão de que não sente calor não pode ser explicada buscando uma lógica no seu comportamento, mas sim mostrando que por trás deste há uma loucura geral. A teoria econômica diria que o consumidor obtém, com o carro e as janelas fechadas, um nível de satisfação maior do que o grau de conforto das janelas abertas. A inconseqüência não é apenas do consumidor. A teoria que se diz científica, trabalhando na inconseqüência, influi na divulgação e na legitimação do absurdo. Mergulhar na realidade do país exige um mergulho nas teorias que mais fortemente vêm influenciando a consciência dos brasileiros. Para tanto é preciso desvencilhar-se dos preconceitos, tentando usar o sentimento, arriscando incoerências, aventurando-se, como em qualquer mergulho. É preciso explicar por que os brasileiros fecham os vidros do país, para dar a impressão do bem-estar do progresso. |
BUARQUE, Cristovam. A desordem do progresso. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1993. p. 5-6.
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